2 de mar. de 2009

Pronunciamento do Presidente do Banco Central do Brasil, Henrique Meirelles, na Reunião Extraordinária de Ministros Ibero-Americanos de Finanças

Reforço da Regulação e Supervisão
e o seu Papel na Estabilidade do Sistema Financeiro

Porto, 2 de março de 2009


Senhoras e Senhores,

1. O filósofo espanhol Ortega y Gasset disse: “Eu sou eu e minhas circunstâncias”.
Da mesma forma, seria inadequado comentar o papel da regulaço e supervisão
do sistema financeiro em abstrato, sem considerar suas circunstâncias históricas
concretas - tanto mais quando vivemos circunstâncias tão especiais: algo que co-
meçou como uma crise localizada nos Estados Unidos já se converteu numa crise
econômica global.



2. A instabilidade atual foi em parte conseqüência de um longo período de baixas
taxas de juros, alto crescimento global e limitada volatilidade das condições eco-
nômicas. Esse ambiente positivo levou investidores a expandir sua busca por ren-
dimentos através da deterioraço nas curvas de qualidade de crédito, avaliaçes
demasiadamente otimistas e falta de zelo com as obrigaçes contraídas à luz do
exame dos potenciais riscos futuros.

3. Em resposta a esse ambiente, o sistema financeiro criou estruturas e instrumentos
que deram suporte a maior alavancagem, oferecendo rendimentos cada vez mais
altos. Tais instrumentos não eram transparentes e mascararam a extensão da pró-
pria alavancagem, assim como sua interconectividade, dispersa através das insti-
tuições e mercados. O risco associado a maiores ganhos foi subestimado, sendo
parte dessa avaliação de risco delegada às agências de rating.

4. O comércio de novos produtos financeiros cresceu exponencialmente ao mesmo
tempo que o sistema manteve a demanda por mais associações de capital não-
regulamentadas, através da criaço de veículos de investimento fora de suas de-
monstrações financeiras. Técnicas usuais de gestão de risco não acompanharam o
passo das inovações. Esquemas de remuneraço do setor financeiro, baseadas em
retorno de curto prazo, acompanhados de políticas que favoreciam uma alavanca-
gem crescente, em especial no setor de crédito imobiliário, reforçaram o momen-
tum de tomada de risco.

5. Esse aumento nos preços dos ativos não podia mesmo ser sustentado. À medida
que se propagavam as incertezas de mercado sobre a qualidade dos ativos, crescia
também a aversão ao risco, reduzindo a liquidez e trazendo incerteza às entidades
financeiras sobre sua solidez.

6. Reguladores, formuladores de política e supervisores nos países desenvolvidos
não agiram para estancar a excessiva tomada de risco e tampouco levaram em
conta a interconectividade das atividades das instituições e mercados regulamen-
tados e não-regulamentados, em parte em funço de arcabouços regulatórios
fragmentados e restriçes legais sobre compartilhamento de informaço.
7. Em resumo, as fragilidades regulatórias foram:
Falta de supervisão quanto aos riscos sistêmicos: reconhecido um aumento
exagerado na alavancagem e nos preços dos ativos, não houve uma aço co-
ordenada para se atacar suas implicações nem se debruçou sobre as opções de
aço quanto ao risco sistêmico.
Falta de supervisão quanto às associaçes de capital desregulamentado: ban-
cos de investimento, fundos de hedge, fundos de private equity e vários ins-
trumentos de securitizaço não visíveis em demonstraçes contábeis cresce-
ram desproporcionalmente em importância.
Baixa performance das agências de risco de crédito: houve excesso de confi-
ança nessas agências, assim como falhas nos modelos e metodologias de ava-
liaço de risco, além de desinteresse em tratar os conflitos de interesse no
processo de rating.
Tendências pró-cíclicas alimentadas pelo próprio arcabouço regulatório: cer-
tas práticas contábeis e de regulaço de capitais aumentaram a tendência do
sistema financeiro de amplificar os ciclos de negócios, afetando tanto o grau
de expansão do crédito em condições favoráveis, como o seu grau de contra-
ço em situações adversas.
Falhas na gestão de riscos: ferramentas de gestão usadas pelo sistema não fo-
ram adequadas na estimaço da escala das potenciais perdas e distribuiço de
risco. Arranjos compensatórios freqüentemente encorajaram tomadas de risco
desproporcionais, sem atenço ao longo prazo.
Novos produtos e práticas financeiras sem regulaço: houve crescimento sig-
nificativo de produtos sem qualquer regulaço. Tampouco houve estrutura nas
instituições para gerenciá-los de maneira efetiva.
Falta de transparência: baixa transparência e divulgaço das instituições fi-
nanceiras abalou a confiança dos mercados. A divulgação de informaçes que
eram requeridas das instituições nem sempre deixavam claro o tipo e a magni-
tude dos riscos associados a comprometimentos, identificáveis ou não, nas
suas demonstrações contábeis.

8. Passemos às respostas regulatórias que a situaço atual demanda. Cabe observar,
em primeiro lugar, que várias - senão todas - as falhas descritas anteriormente a-
pontam para a necessidade de reforço da regulaço e supervisão financeira em di-
versas direções:
Incluindo preocupaçes macroprudenciais na determinaço do capital regula-
tório, melhorando as práticas de gerenciamento de liquidez, insistindo no au-
mento da transparência quanto aos riscos incorridos e levando em conta os in-
centivos criados pela própria regulaço;
Instituindo supervisão onde não há e monitorando com mais acuidade o com-
portamento das instituições já supervisionadas;
Dando tratamento regulamentar e de supervisão mais rigoroso às instituiçes
sistemicamente importantes, sobretudo aos conglomerados financeiros gran-
des e complexos, de atuaço internacional;
Aprimorando os mecanismos de provisão de liquidez de emergência e de re-
soluço de crises.

9. Não é por outra razão que fóruns internacionais, como o G-20, o Fórum de Esta-
bilidade Financeira, o Comitê de Basiléia para Supervisão Bancária e outras enti-
dades responsáveis pela formulação de padrões de regulaço financeira e contábil
estão sob intensa pressão para aperfeiçoar suas regras, levando em conta as liçes
da atual crise financeira.

10. O aperfeiçoamento regulatório terá que ser feito gradualmente, para que os novos
requisitos não venham a se sobrepor às naturais dificuldades enfrentadas pelas
instituições financeiras não só pela crise de confiança conjuntural como pela con-
traço de atividade que já alcançou o setor não-financeiro. Ao contrário, o trata-
mento emergencial da crise implica também na utilizaço parcial dos “colchões”
regulatórios já constituídos, seja pelos requisitos de capital, seja, como no caso
brasileiro, pelos requerimentos de reservas sobre depósitos.

11. Da enorme quantidade de temas de regulaço financeira e soluções alternativas
em debate, irei me concentrar em dois, que me parecem particularmente relevan-
tes: a questão da pró-ciclicalidade da regulaço prudencial e o gerenciamento da
liquidez.

12. Quanto à pró-ciclicalidade, trata-se de reconhecer que potencialmente a regula-
ço pode incentivar a crescente assunço de riscos na fase favorável do ciclo e-
conômico, dando lugar a problemas durante a fase menos favorável. Sob o ponto
de vista prudencial, há argumentos teóricos e empíricos mais do que suficientes
para justificar o desenvolvimento de políticas regulatórias que forcem os bancos
a reconhecer o maior nível de risco de crédito que acumulam em seus balanços
nos períodos expansionistas. A partir desse reconhecimento, a idéia é tornar a
regulaço mais neutra em relaço ao ciclo, por exemplo, através da adoção da
prática de “provisionamento dinâmico” como adotada na Espanha, ou de um
multiplicador aplicado aos requisitos de capital baseado na taxa de crescimento
dos ativos bancários ou outra variável que represente a variaço cíclica.

13. Não se trata, em absoluto, de utilizar a regulação prudencial como instrumento
para atingir estabilidade macroeconômica, o que seria inadequado por duas ra-
zões: (i) diminuiria a transparência e a boa comunicaço essenciais para a con-
duço da política macroeconômica, e (ii) traria risco de contaminar a conduço
estritamente prudencial do sistema financeiro por eventos e decisões tomadas em
outras esferas.

14. No que respeita à liquidez, requisito fundamental para a continuidade das opera-
çes normais de uma instituiço financeira, maior atenço deve ser dada ao des-
casamento entre ativos e passivos, mediante o aprimoramento das práticas de ges-
tão de risco, envolvendo, por exemplo, plano de contingência para situações de
stress que considere todas as atividades de negócio, tendo em conta os efeitos da
interconectividade entre elas. Outro aspecto relevante é o estabelecimento de me-
canismos que viabilizem a atuaço tempestiva na manutenço do equilíbrio de li-
quidez no sistema financeiro por parte dos bancos centrais.

15. Ao longo dos anos 90 o foco da regulação foi, fundamentalmente, destinado à
qualidade das operações ativas, com particular atenço ao risco de crédito, risco
de mercado e, ainda que recentemente, ao risco operacional. O risco de liquidez
era objeto de orientaço genérica sobre melhores práticas, sob a integral respon-
sabilidade das instituiçes. No entanto, a crise recente deflagrou a discussão sobre
os critérios existentes e ressaltou a importância da gestão adequada de tal risco,
que se torna mais sensível, obviamente, nos momentos de “pânico” e desfazimen-
to de posições.
16. O momento atual é de avançar no estabelecimento de regulação mais rígida no
que respeita aos incentivos para gestão de riscos e de requisito de capital, dando
tratamento mais adequado às exposiçes em instrumentos complexos e compro-
missos fora de balanço, conjugada à maior convergência na composiço desse
capital. Adicionalmente, a supervisão deve dedicar maior esforço ao monitora-
mento macroprudencial, incluindo todos os integrantes do sistema financeiro, e
ao desenvolvimento de mecanismos que permitam a identificaço tempestiva de
sinais de comprometimento do equilíbrio desse sistema, buscando a perfeita com-
preensão dos instrumentos e inovaçes introduzidas pelas instituiçes.

17. Prevemos um sistema financeiro que mantenha muitas das características atuais,
mas que se desenvolva como resposta à crise. O sistema continuará global, inter-
conectado e confiante no livre-comércio.

18. As instituições financeiras continuarão a confiar na combinação de depósitos e
mercados de capitais para seu financiamento. Fundos de financiamento continua-
rão interconectados e problemas nesses mercados serão transferidos entre institui-
çes e países, avançados ou emergentes.

19. Inovaçes financeiras continuarão a ter papel importante. Os formuladores de po-
lítica e autoridades reguladoras precisarão estar melhor instrumentalizados para
lidar com as conseqüências de tais inovaçes em uma rede de segurança prudente.

20. Enquanto alguns produtos deverão ser simplificados para terem maior aceitaço,
técnicas de gestão de risco deverão ser aprimoradas, inclusive em complexidade,
assim como o arcabouço regulatório, que precisará responder adequadamente aos
riscos associados.

21. Uma desalavancagem maciça já está sendo forçada pelas perdas e forte aversão
ao risco e prevê-se que o período pós-crise será marcado por um sistema com ní-
veis mais baixos de alavancagem, reduço no desalinhamento de financiamentos,
menos exposiço ao risco e maior transparência com relaço aos instrumentos fi-
nanceiros. Contudo, à medida que o ciclo de crédito se recupere haverá inevitável
pressão para aumento dos lucros através de crescente alavancagem.

22. Finalmente, é fundamental a cooperação entre os supervisores domésticos e inter-
nacionais, para que a soluço de eventuais desequilíbrios seja conduzida de ma-
neira coordenada e eficaz. Um sistema financeiro global exige respostas globais e
açes coordenadas


Obrigado


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